"Era um dia de Inverno
cerrado e à escuridão de um lento amanhecer juntou-se o corte geral de eletricidade.
Há muito que andava a sofrer com a perseguição de um grupo de quatro rapazes
bem mais velhos do que eu, que me abordavam, elogiavam, lançavam piropos
asquerosos, apalpavam-me e fugiam. Naquela manhã de Janeiro, aproveitaram o
facto de, no meio da escuridão, me ter perdido das minhas amigas no tumulto de
um átrio repleto de crianças e jovens ao rubro e cercaram-me, enquanto procurava
as minhas amigas na rua, em busca de um pouco mais de claridade. Quando os vi a
aproximarem-se com aquelas expressões de leões ferozes que encontram novas
presas, tremi de medo. Só tive tempo de fugir pela única escapatória possível
que ia dar às salas mais desagregadas e, por isso, mais desertas da escola: a
biblioteca, a secretaria e o Conselho Diretivo. A manhã demorava a clarear e
pensando já estar segura, recuperei o fôlego encostada à parede da biblioteca,
sem que desse conta, eles apanharam-me, cercaram, tocaram, apalparam e beijaram
com uma insensibilidade e uma agressividade assustadora, sem qualquer indício
de caráter, dignidade e até mesmo de arrependimento. Quanto mais me tentava
esquivar, gritando desesperada, mais eles troçavam e aumentavam a intensidade
do toque, tentando silenciar-me, enquanto soltavam os asquerosos elogios do
costume e percorriam todas as partes do meu corpo com as suas mãos sôfregas, contundentes,
repugnantes... Magoaram-me fisicamente, mas a dor que causaram à minha alma foi
mais devastadora e atroz. Eu tinha doze anos, era uma menina demasiado ingénua
e frágil para sofrer tão duro golpe sem que ficasse traumatizada. Corri para a
casa de banho, lavei a minha cara e a minha boca aflitivamente, quis lavar todo
o meu corpo, que me enojava, mas não era possível. A eletricidade voltara, mas
eu permaneci trancada na casa de banho, com um pavor imenso do que lá fora me
poderia novamente esperar. Sentada na sanita, debruçada no meu colo, esfregava
a boca com o intuito de a limpar, com movimentos cuja intensidade ia agressivamente
aumentando, como que autopunindo-me por ter sido beijada, como que tentando
arrancar a pele para que não restasse a mínima possibilidade de ainda haver
vestígios de saliva daqueles selvagens. Encontrei por fim as minhas amigas,
procuravam-me preocupadíssimas por não me verem há tanto tempo e quando se aperceberam
de que algo de grave me havia acontecido, ficaram extremamente assustadas dando-me
muito apoio e consolo, fazendo com que me sentisse protegida, amada, mas fi-las
de imediato prometer que não contariam a ninguém, pois aqueles monstros com
corpos de homem, haviam-me ameaçado que se alguém tivesse conhecimento do
sucedido, iriam fazer muito pior. Demorei a recompor-me, mas tinha de fazê-lo. A
minha mãe chegaria dentro de pouco tempo para uma reunião com a diretora de
turma e não podia suspeitar do que havia acontecido. Se soubesse, iria
apresentar queixa no Conselho Diretivo e tentar chegar à conversa com os
indivíduos e, mais tarde ou mais cedo, eu iria sofrer represálias. Para eles
foi uma brincadeira inconsequente, para mim foi um trauma que gerou pesadelos,
medo, angústia e remorsos porque a minha baixa autoestima e insegurança
toldaram-me o discernimento e fizeram com que acreditasse que a culpa tinha
sido minha. Eles nunca souberam o rombo que causaram no meu desenvolvimento,
nem desconfiaram da aversão que me ficou aos rapazes e que condicionou irremediavelmente
a minha vivência social."
Excerto do livro "Juntos Somos Invencíveis."
E em
escassos minutos muda tudo, o modo como vemos o mundo, o modo como nos vemos no
mundo, o olhar cristalino com que contemplavas o mundo minutos antes, vê-se
agora embaciado por lágrimas que te obrigam a abrir os olhos, conceber uma nova
realidade, percebendo gravemente que a tinta cor-de-rosa com que sempre
quiseste pintar o mundo à tua volta, era parca para o tanto que havia ainda por
pintar. E nada é igual, refugias-te em ti mesmo, constróis barreiras intransponíveis
que em vês de te protegerem, fazem com que te isoles e te sintas mais e mais só
e desagregado.
O
Bullying mata-nos, mesmo que ninguém o note, mata-nos o brio, a coragem, o amor-próprio
e como o corpo continua vivo, obrigamo-nos a ressuscitar e a começar do zero,
com mais ou menos complexos, com mais ou menos inseguranças e medos, mas é
assim, faz parte do processo, é natural existirem boas e más pessoas, temos que
conseguir contornar as cicatrizes que as menos boas nos desenham na alma e
seguir em frente, erguendo a cabeça tanto quanto conseguirmos, até ao limite em
que vemos os sorrisos sarcásticos de quem aplaudiu a nossa humilhação e
voltamos a olhar para o chão, para fugir aos sorrisos das pessoas menos boas e
dos seus amigos, que nos chamaram de gordos, de palitos, de feios, de orelhudos,
de narigudos, de betos, de cromos, de pretos, de tudo o que lhes vier à mente e
que sirva para nos fazer sentir diferentes, menos bons, miseráveis…
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